POROS
ABERTOS: CORPO EM AÇÃO E DISPERSÃO
(texto publicado nos Anais da ANPAP 2015)
claudia
paim
Resumo:
Este
texto aborda a arte da performance, em sua modalidade presencial e
fotoperformance, discutindo a potência do corpo do performer em espaços
públicos, bem como nos espaços mais
tradicionais de visibilidade da arte. O corpo é observado como instrumento que
inquieta e provoca ruído, tanto em outros corpos quanto na maneira como
pensamos e sentimos. O corpo é
conformado, ou seja, habituado a regras e condicionado a papéis, posturas e
afetos. A performance, então, indaga sobre como desconstruí-lo ou, pelo menos,
sua capacidade de torná-lo mais consciente. A imagem de poros abertos projeta o
pensamento sobre os encontros: o corpo usado pelo performer que abre seus poros
para que fluxos se estabeleçam com o outro.
São ainda apresentadas
performances da autora e de outros artistas para discutir sobre a
dispersão como técnica de performar.
Palavras-chave:
arte da performance; corpo; dispersão; poros abertos
Corpo
com os poros bem abertos.
Vou
começar com aberturas. Quando entramos em uma casa fechada, abrimos as janelas
para ver melhor, para que o ar e a luz atravessem os espaços em um movimento
contínuo de alimentação viva dos mesmos. O que fazemos com nossos corpos? Desde
já afirmo que, aqui, muito mais do que respostas, o que eu trouxe foram
perguntas e os estados de inquietação que permitiram a aparição das mesmas,
também experimentações em performances, buscando compartilhar pontos de partida
ou modos de abordagem de questões como gênero, participação direta, narrativas
e discurso amoroso. Assim, o que trago é, antes de tudo, um pensamento em
composição permanente.
Um
corpo aberto: pode ser aquele exposto sobre uma mesa de dissecação onde se
espera que ele revele seu funcionamento e, ainda, as causas de seu blecaute.
Todavia, aqui, ele é o corpo excitado, com os poros abertos: na excitação
amorosa o menor gesto do outro, seu mais leve toque tem a dimensão de produzir
em mim sensações reveladoras. Descubro partes de meu corpo na interação com o
corpo do outro, tenho de estar de poros bem abertos. Suely Rolnik fala de
“corpo vibrátil": aquele que se deixa atravessar pelo outro, ele não sente
e pensa o outro como seu fora, mas é com ele que produz sua singularidade
(ROLNIK, 2006).
Em
inglês, bem como no português, performance é palavra que também se relaciona a
desempenho. Em espanhol, se diz ainda arte
de acción, o que já indica um sentido ligado ao corpo como dispositivo para
alavancar conceitos e sensações por meio de sua ação. Quando falo simplesmente
de performance, visando tornar o texto mais ágil, é sobre a performance art ou
arte da performance que estou tratando. A necessidade de tal esclarecimento
deve-se ao fato de que outras
manifestações tem traços de performatividade. Nesse aspecto, podemos pensar
inclusive na onda de manifestações públicas que varreram o Brasil, em 2013,
quando milhares de pessoas saíram às ruas, visando manifestarem-se com
enunciações singulares, cartazes, pinturas corporais e fantasias.
Diana
Taylor, pesquisadora dos estudos de performance, afirma que esse campo busca “transcender as separações
disciplinares entre antropologia, teatro, linguística, sociologia e artes
visuais, enfocando no estudo do comportamento humano, as práticas corporais, os
atos, os rituais, os jogos e as enunciações” (TAYLOR, 2012, p. 11).
Nesse
texto, a performance é vista como uma prática onde o artista usa o seu próprio
corpo como material. Com ele que o artista interpela o outro produzindo
experiências estéticas, ou seja, sensíveis, para produzir sentidos, gerar
dúvidas e inquietações. As performances que serão abordadas são consideradas
também como uma ação política, por assumirem uma posição por meio de discurso
corporal consciente e intencional. Junto
com Taylor, observo a performance como um ato vital de transferência e meio de
intervenção no mundo (TAYLOR, 2012).
Para
refletir sobre a ideia de que o corpo que performa é um corpo com os poros
abertos, trago alguns trabalhos como exemplos. Fluoxetina é um deles,
pois a aproximação entre o corpo da
performer e o das pessoas presentes exige uma disposição de acolher esse
contato pele a pele, ao ponto de haver uma sensível troca de temperatura entre
esses corpos. Além disso, receber nas
mãos um pequeno embrulho de tecido, de toque suave como é o veludo, ainda
quente pelo que contém – a minha saliva – também é abertura, é estar com os
poros abertos. Fluoxetina será
mais bem apresentada adiante, quando falo de dispersão como técnica de
performance. Por ora, vou tratar de
Carta e Amálgamas, são todas performances minhas, e Inundação – ação realizada
pelo coletivo Chicamatafumba[1].
Começando
pelo trabalho do Chicamatafumba: conforme nos apresentamos no blog,
formamos um “grupo de intervenções interurbanas que realiza ações poéticas. Objetivo:
capturar e mobilizar a atenção para interromper no outro o fluxo cotidiano.
Tática: os corpos entram em ação e a abandonam. O que fica deste encontro?”[2].
Assim, posso dizer que em Inundação (ação realizada durante a Semana
Experimental Urbana – SEU, em Porto Alegre, 2010) a recepção de nosso trabalho
ocorreu gradativamente com sons que emitíamos no ambiente. Para essa ação, convidamos Ulises Ferretti, que também foi o
músico responsável pela composição de paisagem sonora, usando sons do Rio
Guaíba. Esse rio banha a cidade, mas há vários bairros que estão muito
distantes, cujos habitantes não têm relação com o mesmo.
A
ação poética: entrávamos em alguns ônibus e no metrô de superfície e nos
colocávamos em pontos diferentes, sem falarmos uns com os outros. Cada um de
nós levava escondido um cd player. Aos poucos, durante o percurso, íamos
ligando os equipamentos e assim gerávamos uma nova paisagem com a mistura de
sons pré-gravados e os que estavam acontecendo no momento da ação. Deixávamos
que o ambiente fosse transformado durante algum tempo e, gradualmente,
desligávamos os aparelhos. Saíamos dos ônibus em silêncio. A atenção na escuta
iniciava com a surpresa e ia crescendo pela curiosidade, creio que depois de
algum tempo havia como que uma distensão e fruição do trabalho, ou seja, alguns
usuários desses meios de transporte ficaram com os sentidos mais ativados
– poros abertos[3]).
A
performance Carta foi realizada pela primeira vez em São Paulo, na
Galeria Vermelho, durante a VERBO 07
Mostra de performances, vídeos e instalações, em julho de 2007. Foi
reperformada em Porto Alegre, durante o Festival Plataforma Performance, em
2010[4].
A reperformance vista não como repetição mecânica – a impossibilidade de tal
por tratar-se de prática intersubjetiva e com a infinita potência de devir dos
corpos – mas como reatualização. Recomposição com outros corpos e
contingências. Carta foi criada em torno de um texto manuscrito, na verdade uma
cópia do livro Carta ao Pai, de Franz Kafka, onde alterei o gênero: quando
havia masculino, era substituído por feminino, assim, tornou-se uma carta de
filha para mãe. Esse texto era lido em voz alta, na íntegra, e foi acompanhado
pela ação de urinar. Qual o significado dessa urina? Busquei construir o corpo
e a ação com elementos que ressaltassem a fragilidade do ser humano, a ideia da
potência do amor como força que pode salvar, mas, também, matar e a nossa
compartilhada humanidade enquanto corpos feitos de carne, sangue e outros
fluídos.
A
urina foi integrada buscando falar desta
comunhão[5].
Aqui, era abrir os esfíncteres para gerar consciência de nosso corpo e afetos
submetidos a forças titânicas (nossos próprios traumas?). Urinar para
desconstruir ideia manipulada pela propaganda sobre a intocável positividade do
amor. Podemos pensar ainda em dispersão como técnica de performar, com o
intuito de obter o seu contrário – a condensação da atenção. Foco sobre este
corpo em diluição através de sua urina
que se espalhava pelo chão, empapando as páginas da carta que por ali
iam sendo abandonadas. Estavam abertos os poros e pulmões da performer, em uma difícil sustentação dos braços, levada
até o limite. Os presentes a esta performance com seus poros e narinas também
abertos sentindo o cheiro de minha urina e escutando meu arfar, até o ponto
da insustentabilidade, quando se
lançaram sobre meu corpo, abaixando os braços e desamarrando meus pés (fig.
01).
Fig. 01. Claudia Paim. Carta. Performance, 2010.
Fig. 01. Claudia Paim. Carta. Performance, 2010.
Em
Amálgamas,[6] há, como em Carta, a presença do texto.
Nesta performance, a técnica da dispersão foi usada com objetos e narrativa.
Duas grandes conchas eram colocadas nos ouvidos dos presentes após eu ter
sussurrado para cada, uma pequena e densa história. A ideia foi compor uma ação com uma
fotografia que ficava exposta[7].
Esta é uma fotoperformance onde se vê uma mulher em fusão com o mundo. Faz
parte de uma série chamada corpopaisagem, onde há um corpo vibrátil em sua composição viva com o outro, nesse
caso, a paisagem (fig. 02).
Fig. 02. Claudia Paim. Corpopaisagem#1. Fotoperformance, 2012.
Fig. 02. Claudia Paim. Corpopaisagem#1. Fotoperformance, 2012.
Amálgamas
é fotografia e performance. Aqui, o ato de sussurrar exigia uma
aproximação dos corpos, o calor gerado pelo murmúrio no ouvido era
potencializado por uma determinação em tentar entender a micro-história que não
fora construída linearmente a partir da ideia de início-meio-fim. Ao escrever
esse texto, pensei na apreensão de um fragmento pulsante de vida. Transcrevo o
mesmo: “...ela vive à beira mar...Em uma praia imensa e deserta... Ali não há
nada além de navios naufragados... e margaridas amarelas... Aos seus ouvidos o
barulho do mar... às vezes é canção... às vezes é ruído...”. Depois de
sussurrar, ao colocar as conchas nos ouvidos de quem havia permitido que eu me
aproximasse, buscava criar para ele ou ela uma sensação de estar imerso em seu
próprio mundo sonoro. Ficava ali,
segurando as conchas até perceber que se estabelecera a escuta desta sonoridade
tão própria (fig. 03).
As sensações dos corpos
juntos, do som compartilhado com sutileza, propiciava uma atitude permissiva e receptiva para desfrutar do
prazer proposto pela performance – todos, performer e presentes, tinham de estar com os poros
abertos. O manejo do tempo também é um dado técnico importante: havia uma
calculada distensão temporal, toda a ação foi realizada de maneira mais lenta
do que as ações cotidianas.
Fig. 05. Claudia Paim. tenho medo de quem só quer o meu bem. Performance, 2009.
Fig.
03. Claudia Paim. Amálgamas. Performance, 2013.
Seguindo
com a observação do corpo de poros abertos, este corpo vibrátil é evocado
também nas outras fotoperformances da série corpopaisagem. Estas imagens
foram produzidas para dar conta da percepção que tinha e tenho de ser também
paisagem. Como possuo duplo domicílio,
estou em permanente deslocamento entre Porto Alegre e Rio Grande. Assim, minha
atenção começou a ser mobilizada pela paisagem, além disso, nesta última cidade
há a imensidão lisa dos espaços do litoral sul e do pampa. Flávia Azambuja, ao
ver estas fotoperformances, questiona “com os pés no chão onde pousamos ou
repousamos nossos olhos...?” (AZAMBUJA, 2014, p.52). Passei a me sentir tão
paisagem quanto o que meus olhos viam. Daí nasceram fotoperformances onde busco
me dispersar no mundo formando com ele um único corpo. Sou eumundo. (Fig. 4).
Fig. 04. Claudia Paim. corpopaisagem#2. Fotoperformance, 2012.
Fig. 04. Claudia Paim. corpopaisagem#2. Fotoperformance, 2012.
Dispersão
A
palavra dispersão nos remete à ideia de fragmentação, de dissolução. Um vento
súbito que entra pela janela e dispersas os papéis que estavam sobre a mesa ou
um sopro que dispersa o pó acumulado sobre um livro esquecido em algum canto.
Entretanto, também estar disperso significa não ter a atenção focada. Não estar
concentrado. Olhar as nuvens pela janela e juntar-se a elas quando nosso corpo
permanece sentado dentro de uma sala qualquer.
Assim,
para começar a falar sobre dispersão como técnica de performance visando a
concentrar a atenção do outro em minha ação, apresento por antinomia um
trabalho onde utilizei a técnica contrária: da acumulação. Na performance tenho
medo de quem só quer o meu bem[8] ,
o acúmulo foi pela repetição da ingestão de alimentos. Acumular em um mesmo
corpo que come desenfreadamente e fala, com a boca cheia, uma coleção de frases
ouvidas por muitos de nós sobre as qualidades da alimentação. Um corpo que chama atenção e
gera desconforto no outro pelo absurdo da compulsão de alimentos misturados,
sem regras. Esse corpo devorador e que profere
uma série de enunciados dos cuidados amorosos para com o corpo infantil
faz surgir, como cintilação, a
constatação de que o amor também é perigoso. Ele pode ser nefasto e fatal (fig.
05).
Fig. 05. Claudia Paim. tenho medo de quem só quer o meu bem. Performance, 2009.
Agora
já sublinhado o que entendo por acumulação como técnica, começo a falar da
dispersão. Ela também pode ser vista como técnica. Possibilidade 1: dispersar o
próprio corpo. Urinar, como já citei anteriormente, na performance Carta. Ou
cuspir, como em Fluoxetina. Expeli estes líquidos produzidos pelo meu corpo e deixei-os em
fluxo pelo mundo. Usei o outro como agente de minha dispersão. Ao mesmo tempo em
que provoquei sua hesitação, pois não estamos acostumados a lidar com as
secreções alheias, a não ser em momentos de intimidade ou cuidados higiênicos
(durante relação sexual ou ao cuidar de um bebê, são exemplos facilmente
reconhecíveis). A técnica da dispersão foi aplicada para obter concentração de
atenção do outro sobre meu corpo e sobre seu próprio corpo. Também exigi
respostas – participar ou não: questionei acerca de sua potência e
corporeidade. Usarei a performance Fluoxetina[9]
para demonstrar estas ideias.
Fluoxetina
foi
um trabalho no qual busquei a participação ativa dos presentes de duas
maneiras: pela aceitação ou não de um objeto e pela escuta[10] . Uma breve descrição pode ajudar a entender: a
performer usando um vestido de festa, em veludo preto, entra no espaço,
descalça as sandálias de salto alto (despir-se de convenções). Olha ao redor e
fala calmamente: “eu tenho medo” (comungar nossa humanidade). Com uma tesoura
corta um pedaço do vestido (fragmentação de si), cospe nele e o dobra delicadamente,
formando um pequeno embrulho de sua baba. Escolhe alguém e entrega-lhe na mão o
pacote com sua saliva (dispersão), ao mesmo tempo sussurra ao seu ouvido algum
de seus temores que acredita possa ser compartilhado/vivido/experimentado pelo
outro (composição com o outro). Vira-se e volta para o centro do espaço
repetindo a ação até que quase não reste mais nada de sua roupa (fig. 06). É
importante dizer que cada embrulho foi acompanhado por segredar medos
distintos, quase não houve repetição. O que foi ativado aqui com a dispersão de
meu corpo? Um foco de atenção e a
“afetação recíproca” entre mim e o outro (PELBART, 2006, P. 73).
Fig.
06. Claudia Paim. Fluoxetina. Performance, 2013.
Esta
composição pulsante com o outro é fundamental para romper com o sistema de
modelos a serem seguidos. Ao invés de identificação com imagens idealizadas,
produzidas e divulgadas para vampirizar ou cafetinar nossas forças criativas
(ROLNIK, 2006, p.22), abro meus poros e exijo o mesmo do outro através de sua
tomada de decisão (ou pega o embrulho e
escuta, ou me rejeita). Corpo vibrátil, poros abertos. Com isso,
busco estabelecer composições instáveis entre corpos simultâneos. A instabilidade é inerente, pois em uma
relação viva há movimento contínuo, o que aqui também chamo fluxo: na
composição com o outro, necessariamente as âncoras devem estar levantadas para
que possamos nos mover juntos. É a imagem da dança: dançar junto com alguém
acontece no próprio ato. Dançando é que os corpos se afinam.
As
expressões do “corpo vibrátil”,
segundo Suely Rolnik, são “culturais e existenciais engendradas numa relação
viva com o outro e que desestabilizam a cartografia vigente” (ROLNIK, 2006,
p.16). Esse “corpo vibrátil” é aquele que se compõe com a alteridade.
Por isso, apresento, aqui, a ideia de corpo com os poros abertos: ele
escava em si sua potência e agencia-se com o outro. Para a performance Fluoxetina
havia poucos elementos além do corpo da performer: vestido, sandália e tesoura.
Os corpos presentes eram ativos, conscientes, vibrando pela tensão provocada ao
não saber se seriam escolhidos ou não
para escutar medos sussurrados ao pé do ouvido, pela sensação de proximidade e
de calor, pela espera suspensiva e pela curiosidade sobre o que iria escutar. Já
meu corpo capturava cada olhar, gesto e postura intuindo os medos a serem
compartilhados.
A
ideia de dispersão também é encontrada como técnica para prender a atenção na
performance de Mickken Diogo, chamada Gift em Inglês, Gift em Alemão[11]. Nesse trabalho, o artista caminha entre as
pessoas presentes, ele tem nas mãos um pequeno saco de tecido com flores
naturais, a cada tanto o abre e arrota estrondosamente dentro. Depois, pega
carinhosamente uma das flores e oferece a alguém. Repete inúmeras vezes. O que
é inquietante nessa sua ação é o contraste entre a delicadeza de oferecer
flores e a força do arroto que as cobre. Um composto estranho que fez com que
algumas pessoas, logo após receber uma flor, jogassem-na fora abruptamente. O
performer usou a dispersão tanto do objeto-flor quanto de seu corpo através da
emissão ruidosa do ar. Quantos corpos
ele ofereceu? O que exatamente cada um estava recebendo? A dispersão destes
corpos provocando um estranhamento no corpo cotidiano – o corpo conformado. Despertando a atenção
sobre os limites e usos das convenções sociais (fig. 07).
Fig. 07. Mickken Diogo, Gift em Inglês, Gift em Alemão. Performance, 2014
Fig. 07. Mickken Diogo, Gift em Inglês, Gift em Alemão. Performance, 2014
Até
aqui apresentei proposições que tratam, sobretudo, da dispersão do corpo do
performer. Agora, a possibilidade 2: dispersão de
outros corpos. Posso, então, pensar a técnica da dispersão aplicada a objetos apropriados, como na performance Encantamento –
versão séc. XXI, ou ações com objetos que possuem seus próprios caminhos de circulação, como é o
caso dos cartões de visita. Em Encantamento
– versão séc. XXI[12],
eu distribuí aproximadamente uma centena de sapos de cerâmica, destes que são
usados nos jardins. No entanto, tratarei disso a seguir, ao falar da potência
da performance realizada na rua.
Cartões de visita são usados com frequência durante encontros
sociais e profissionais. Habitualmente, eles são oferecidos como suportes para
informações de contato do portador. Assim, são feitos para circular,
dispersando-se pelo mundo. Esta é sua função. Hélio Fervenza é um artista que
se vale dos mesmos criando uma situação invulgar: oferece dois cartões de
apresentação a cada vez, um com seus dados e outro apenas com o nome de algum
deserto. Para Fervenza, “com a
entrega do cartão, espaços podem ser configurados: espaço da relação
interpessoal, social, profissional e o espaço do imaginário ligado ao nome/evocação dos desertos”
(FERVENZA, 2003, p. 49). Assim, o que ele promove é “um espaço que surge da
inter-relação entre as pessoas” por meio desta alteração de situação e objeto
ordinários (IBIDEM). Os cartões seguem
seus fluxos. O artista tem uma percepção muito singular sobre esta sua
proposição e compartilho de suas inquietações e objetivos em um trabalho também
com objetos-cartões.
Em minha proposta, uso cartão de visita por ser um objeto que
naturalmente se dispersa. Nele há, de um lado, as informações habituais, de
outro há um autorretrato onde apareço de costas e quase sem cabelos. Costumo
entregá-lo normalmente e com a foto virada para cima. As reações são quase
sempre de hesitação frente ao inusual da imagem e é, a partir de então, que
aquilo que me interessa nesse processo surge:
o aquecimento do contato pelas perguntas e pela conversa que se
estabelece. Em geral, a situação mecânica se torna recoberta por humanidade.
Então, a escolha dos cartões é devida a sua finalidade e movimento inerentes ao
uso. Corpos que se dispersam. (Fig.08)
Fig. 08. Claudia Paim. Autorretrato. Fotografia em cartão de visitas,
2010.
Corpos
que produzem esfera pública
Agora passo a indagar sobre a potência dos corpos
que performam em “espaços cotidianos”, fora das quatro paredes dos tradicionais
espaços de visibilidade para a arte – tais como museus, centros culturais e
galerias (PAIM, 2012, pp.7- 9). Performances que produzem esfera pública. Esta,
de acordo com Alexander Kluge e Oskar Negt, em Esfera pública y experiencia. Hacia un análisis de las esferas públicas
burguesa y proletaria, é o elemento básico para a experiência do
intercâmbio social. Assim, “a esfera pública é o que poderíamos chamar a
fábrica do político: o lugar onde se produz” (In: BLANCO et al, 2001, p. 270).
As performances que agora apresento indagam sobre
temas como alteridade e gênero, usando a rua ou um espaço pouco convencional
como, por exemplo, um bar no centro de uma grande cidade. Bar Itatiaia é o nome do lugar e da performance que Ana Tomimori realizou em 2009, em Belo
Horizonte. Foi reperformada em Fortaleza, em 2011, com o nome de Bar. A artista, de calcinha e sutiã cor
da pele, permaneceu durante uma hora dentro de uma vitrine usada para guardar
alimentos (fig.09). Não havia nenhuma explicação, nenhuma placa, nada que
servisse para apaziguar a inquietação dos fregueses por ver um corpo em um
lugar que, normalmente, não ocupa. O que significa este corpo feminino
oferecido como um produto a mais? Por colocar-se “como um pedaço de comida,
imóvel em uma vitrine”, a artista diz que acredita ter gerado “um confronto com a imagem super produzida e
idealizada da mulher que estamos acostumados a ver nos outdoors, cartazes,
televisão, internet, entre outros meios de comunicação” (TOMIMORI, 2011, p.
62). Não há como saber o que cada um produziu de sentido, mas certamente muitas
perguntas surgiram[13].
Fig. 09. Bar.
Ana Paula Tomimori. Performance, 2011.
Em Inundação, já tratada anteriormente, cabe sublinhar o uso de meios
de transporte urbano como o lugar escolhido pelo coletivo Chicamatafumba. Foi o local onde por meio da emissão de uma
paisagem sonora, alteramos não apenas o ambiente, mas sobressaltamos a
percepção sobre o mesmo. Interrompemos a maneira desatenta de estar em um
espaço/tempo banal, convocamos os sentidos através da ativação da escuta para
aquele momento. Tanto como em Bar,
não havia anúncios para a ação. O intempestivo atuando a favor do contato
intersubjetivo: estranhos que começavam conversas na busca de explicações para
o sem-sentido da ação. Promoção de contatos, mesmo que fugazes, onde impera o
isolamento individual. Abaixar a guarda, gozar o instante.
Encantamento
– versão século XXI também já foi abordada pela dispersão
como técnica, pois eu oferecia sapos de
cerâmica aos transeuntes. Busquei reciprocidade de corpos. Em prol de maior
clareza, remeto à gênese dessa performance. A partir de 2011, passei a indagar
histórias infantis como instrumentos que constroem o corpo. Interessei-me pela
construção de gênero, o corpo feminino atravessado pela narrativa. Assim, li
diferentes versões de contos e detive-me em “A princesa e o sapo”. Na versão
dos Irmãos Grimm, a princesinha – cansada dos reiterados pedidos de atenção do
sapo, que exigia que ela cumprisse sua palavra em troca da devolução da bola,
devendo não só levá-lo consigo para o
castelo, mas brincar, comer juntos e, por fim, colocá-lo em sua cama – toma-o
pela perna e o joga contra a parede. Foi então o choque, e não o beijo de
transformador amor, que quebrou o feitiço.
Passei
a buscar uma atualização em performance para a versão dos Irmãos Grimm. Queria
gerar perguntas sobre porque são as mulheres que beijam os animais asquerosos?
Realmente temos o poder de transformá-los? O amor é transformador? Assim, criei
a performance Eles não foram felizes para
sempre[14].
Nela, começo com o beijo em um sapo de cerâmica, depois o olho e, ao verificar
sua teimosia batráquia (pois não virava príncipe), usando martelo, machado e
outros instrumentos, o reduzo a pedaços. Fiz isso com cem sapos em uma
performance que durou duas horas, aproximadamente. Depois passei a refletir
sobre a necessidade da princesa/mulher ser feliz apenas com o príncipe/homem. E
se eu gozar com os sapos? Com as rãs? Quem é o sapo e quem o príncipe? Este
último não é tão construído como a princesa? Dessa forma, elaborei uma reação a
estas questões na fotoperformance e na videoperformance A felicidade existe[15]
(fig. 10).
_________________
Fig.10.
Claudia Paim. A felicidade existe.
Fotoperformance, 2011.
Partindo
da performance Eles não foram felizes
para sempre, busquei ampliar seu alcance elaborando uma versão para ser
realizada na rua. Desejava outros corpos e espaços cotidianos. Nada da mediação
que um espaço ou um evento artístico arma entre os corpos (um é o corpo do
artista, o outro não, e arte é o que o primeiro faz). Nasceu Encantamento – versão séc. XXI,
realizada no centro de Porto Alegre em um largo onde passam milhares de pessoas
diariamente (fig. 11). Para compartilhar as minhas perguntas, modifiquei a
ação: coloquei em círculo, no chão, quase cem sapos cerâmicos. Posicionei-me no
centro e tomei o primeiro sapo nas mãos. Exibi o mesmo para todos os curiosos
que se juntaram ao redor. Não respondi perguntas nem proferi palavra alguma (já
anteriormente havia decidido pelo silêncio por saber de sua potência
instigadora). Beijei o sapo, olhei-o e voltei a
beijá-lo e acariciá-lo. Olhei-o novamente e ante sua permanência como
sapo, o quebrei jogando ao chão. Tomei
outro sapo e repeti a ação, mas desta vez, ao invés de quebrá-lo, o entreguei a
alguma das pessoas paradas por ali, às vezes inclusive a homens. Cada uma delas
decidiu sua participação: pegar e quebrar, pegar e guardar, não pegar. Assim,
alternei entre quebrar eu mesma e entregar a decisão a outros, até não restar
mais sapos.
Fig.
11. Claudia Paim. Encantamento – versão séc. XXI.
Performance na rua, 2012.
Havia
pensado finalizar Encantamento – versão
séc. XXI, simplesmente com ir embora do local. Entretanto, à medida que o
número de sapos diminuía, eu sentia que a energia crescia e que o círculo se
fechava cada vez mais ao redor de meu corpo. Assim, ao invés de quebrar o
último sapo, apenas o deixei no chão. Várias pessoas se precipitaram sobre o
mesmo enquanto eu saí caminhando. A surpresa final veio por conta de ter sido
seguida por muitas pessoas que gritavam e exigiam uma explicação: “afinal
porque tu fazias isto?”, “porque não falava?” e “porque não pedia nada?”.
Este relato eu o
trouxe, pois acredito que ele evidencia a potência da performance realizada na
rua. Ela produz esfera pública em um lugar onde os corpos estão isolados e de passagem.
O registro em vídeo, eu o editei, deixando algumas das falas produzidas, penso
que ele dá uma noção ampliada do que estou falando[16].
Encerro
buscando ter conseguido argumentar sobre a performance como promotora de
abertura de poros em corpos, muitas vezes, anestesiados. Sobre a possibilidade
de pensar esta prática artística como tendo um repertório tanto conceitual
quanto técnico e processual. Finalmente, sobre a performance como um meio
gerador de conexões, como ativadora de inconformidades e como prática
potencialmente política.
REFERÊNCIAS
AZAMBUJA, Flávia L. Percursos poéticos: relações entre
produções artísticas contemporâneas e Rio Grande do Sul. Trabalho de Conclusão
de Curso. Rio Grande: Instituto de Letras e Artes/ FURG, 2014.
BLANCO, Paloma et al.
(org.) Modos de hacer: arte crítico,
esfera pública y acción directa. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca,
2001.
FERVENZA, Hélio. O + é deserto. São Paulo: Escrituras
Editora, 2003.
PAIM, Claudia. Evidências do corpo. Disponível em: <http://claudiapaimperformance.blogspot.com.br/p/textos-sobre-performance.html>,
acesso em 21 dez. 2013.
____________. Táticas de Artistas na América Latina: coletivos,
iniciativas coletivas e espaços autogestionados. Porto Alegre: Panorama
Crítico, 2012.
PELBART, Peter Pál. “Da
função política do tédio e da alegria”. In: FONSECA, Tania M.Galli e KIRST,
Patrícia G. (org.). Cartografias e
Devires: a construção do presente. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.
ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações
contemporâneas do desejo. Porto
Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2006.
TAYLOR, Diana. Acciones de Memoria: performance,
historia y trauma. Lima (Peru): Fondo Editorial de La Asamblea Nacional de
Rectores, 2012.
TOMIMORI, Ana P.W. Pequenas pausas do silêncio: o corpo
como fala na performance. Trabalho de Conclusão de Curso. Porto Alegre:
Instituto de Artes/UFRGS, 2010.
Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/28007/000768011.pdf?sequence=1>,
acesso em 21 dez. 2013.
_________________
[1] Coletivo
formado por Ana Tomimori, Claudia Paim, Leandro Machado e Thaís Leite.
Desenvolveu uma série de ações performáticas em meios de transporte público
urbano e interurbano, cobrindo a área da Grande Porto Alegre, durante 2009 e
2010.
[2] Disponível
em <chicamatafumba4.blogspot.com>
[4] O registro em
vídeo pode ser visto em: < http://claudiapaimperformance.blogspot.com.br/search?updated-min=2011-01-01T00:00:00-08:00&updated-max=2012-01-01T00:00:00-08:00&max-results=13>
[5] Há
um texto onde já tratei desta performance.
Disponível em: <http://claudiapaimperformance.blogspot.com.br/p/textos-sobre-performance.html>
[6] Performance
realizada durante a exposição Modos de Ser e Estar no Mundo, em Porto Alegre,
Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, Instituto de Artes da UFRGS, em novembro de
2013. Disponível em < http://vimeo.com/84332182 e http://www.youtube.com/watch?v=Vefpbadare4>
[7] Fotografia
colorida, papel matte, 116 x154 cm.
[8] Apresentada
durante a Manifestação Internacional de Performance - MIP 2, em Belo Horizonte,
2009. Registro disponível em: http://vimeo.com/16059785
[9] Fluoxetina
é uma substância usada como antidepressivo e para tratamento de síndrome do
pânico.
[10] Performance
realizada durante o Encontro de Performance ruído.gesto 2013/corpo estranho,
em Rio Grande, RS Este evento é coordenado por mim e pelo artista Ricardo
Ayres, já em sua segunda edição e que visa ser uma ocasião de confluência para
artistas que trabalham a performance tanto presencial, como foto e
videoperformance, na região sul. Vídeo
disponível em: <
claudiapaimperformance.blogspot.com >
[11] Artista
de São Paulo, atualmente vivendo em Rio Grande. Esta performance foi
apresentada no espaço Casa da Alice, em Pelotas-RS, em 05 de fevereiro de 2014.
[12] Performance
realizada durante a Semana Experimental Urbana – SEU 2012, em Porto Alegre.
Registros disponíveis em:< http://claudiapaimperformance.blogspot.com.br/search?updated-min=2014-01-01T00:00:00-08:00&updated-max=2015-01-01T00:00:00-08:00&max-results=5>
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