quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Texto - POROS ABERTOS: CORPO EM AÇÃO E DISPERSÃO

POROS ABERTOS: CORPO EM AÇÃO E DISPERSÃO
(texto publicado nos Anais da ANPAP 2015)
claudia paim

Resumo:
Este texto aborda a arte da performance, em sua modalidade presencial e fotoperformance, discutindo a potência do corpo do performer em espaços públicos,  bem como nos espaços mais tradicionais de visibilidade da arte. O corpo é observado como instrumento que inquieta e provoca ruído, tanto em outros corpos quanto na maneira como pensamos e sentimos.  O corpo é conformado, ou seja, habituado a regras e condicionado a papéis, posturas e afetos. A performance, então, indaga sobre como desconstruí-lo ou, pelo menos, sua capacidade de torná-lo mais consciente. A imagem de poros abertos projeta o pensamento sobre os encontros: o corpo usado pelo performer que abre seus poros para que fluxos se estabeleçam com o outro.  São  ainda apresentadas performances da autora e de outros artistas para discutir sobre a dispersão  como técnica de performar.

Palavras-chave: arte da performance; corpo; dispersão; poros abertos

Corpo com os poros bem abertos.
Vou começar com aberturas. Quando entramos em uma casa fechada, abrimos as janelas para ver melhor, para que o ar e a luz atravessem os espaços em um movimento contínuo de alimentação viva dos mesmos. O que fazemos com nossos corpos? Desde já afirmo que, aqui, muito mais do que respostas, o que eu trouxe foram perguntas e os estados de inquietação que permitiram a aparição das mesmas, também experimentações em performances, buscando compartilhar pontos de partida ou modos de abordagem de questões como gênero, participação direta, narrativas e discurso amoroso. Assim, o que trago é, antes de tudo, um pensamento em composição permanente.
Um corpo aberto: pode ser aquele exposto sobre uma mesa de dissecação onde se espera que ele revele seu funcionamento e, ainda, as causas de seu blecaute. Todavia, aqui, ele é o corpo excitado, com os poros abertos: na excitação amorosa o menor gesto do outro, seu mais leve toque tem a dimensão de produzir em mim sensações reveladoras. Descubro partes de meu corpo na interação com o corpo do outro, tenho de estar de poros bem abertos. Suely Rolnik fala de “corpo vibrátil": aquele que se deixa atravessar pelo outro, ele não sente e pensa o outro como seu fora, mas é com ele que produz sua singularidade (ROLNIK, 2006). 
Em inglês, bem como no português, performance é palavra que também se relaciona a desempenho. Em  espanhol, se diz ainda arte de acción, o que já indica um sentido ligado ao corpo como dispositivo para alavancar conceitos e sensações por meio de sua ação. Quando falo simplesmente de performance, visando tornar o texto mais ágil, é sobre a performance art ou arte da performance que estou tratando. A necessidade de tal esclarecimento deve-se ao fato de que  outras manifestações tem traços de performatividade. Nesse aspecto, podemos pensar inclusive na onda de manifestações públicas que varreram o Brasil, em 2013, quando milhares de pessoas saíram às ruas, visando manifestarem-se com enunciações singulares, cartazes, pinturas corporais e fantasias. 
Diana Taylor, pesquisadora dos estudos de performance, afirma que esse campo  busca “transcender as separações disciplinares entre antropologia, teatro, linguística, sociologia e artes visuais, enfocando no estudo do comportamento humano, as práticas corporais, os atos, os rituais, os jogos e as enunciações” (TAYLOR, 2012, p. 11).
Nesse texto, a performance é vista como uma prática onde o artista usa o seu próprio corpo como material. Com ele que o artista interpela o outro produzindo experiências estéticas, ou seja, sensíveis, para produzir sentidos, gerar dúvidas e inquietações. As performances que serão abordadas são consideradas também como uma ação política, por assumirem uma posição por meio de discurso corporal consciente e intencional.  Junto com Taylor, observo a performance como um ato vital de transferência e meio de intervenção no mundo (TAYLOR, 2012).
Para refletir sobre a ideia de que o corpo que performa é um corpo com os poros abertos, trago alguns trabalhos como exemplos. Fluoxetina é um deles, pois a aproximação  entre o corpo da performer e o das pessoas presentes exige uma disposição de acolher esse contato pele a pele, ao ponto de haver uma sensível troca de temperatura entre esses corpos.  Além disso, receber nas mãos um pequeno embrulho de tecido, de toque suave como é o veludo, ainda quente pelo que contém – a minha saliva – também é abertura, é estar com os poros abertos.  Fluoxetina será mais bem apresentada adiante, quando falo de dispersão como técnica de performance.   Por ora, vou tratar de Carta e Amálgamas, são todas performances minhas, e Inundação  ação realizada pelo coletivo Chicamatafumba[1].
Começando pelo trabalho do Chicamatafumba: conforme nos apresentamos no blog, formamos um “grupo de intervenções interurbanas que realiza ações poéticas. Objetivo: capturar e mobilizar a atenção para interromper no outro o fluxo cotidiano. Tática: os corpos entram em ação e a abandonam. O que fica deste encontro?”[2]. Assim, posso dizer que em Inundação (ação realizada durante a Semana Experimental Urbana – SEU, em Porto Alegre, 2010) a recepção de nosso trabalho ocorreu gradativamente com sons que emitíamos no ambiente. Para essa ação,  convidamos Ulises Ferretti, que também foi o músico responsável pela composição de paisagem sonora, usando sons do Rio Guaíba. Esse rio banha a cidade, mas há vários bairros que estão muito distantes, cujos habitantes não têm relação com o mesmo.
A ação poética: entrávamos em alguns ônibus e no metrô de superfície e nos colocávamos em pontos diferentes, sem falarmos uns com os outros. Cada um de nós levava escondido um cd player. Aos poucos, durante o percurso, íamos ligando os equipamentos e assim gerávamos uma nova paisagem com a mistura de sons pré-gravados e os que estavam acontecendo no momento da ação. Deixávamos que o ambiente fosse transformado durante algum tempo e, gradualmente, desligávamos os aparelhos. Saíamos dos ônibus em silêncio. A atenção na escuta iniciava com a surpresa e ia crescendo pela curiosidade, creio que depois de algum tempo havia como que uma distensão e fruição do trabalho, ou seja, alguns usuários desses meios de transporte ficaram com os sentidos mais ativados –  poros abertos[3]). 
A performance Carta foi realizada pela primeira vez em São Paulo, na Galeria Vermelho, durante a  VERBO 07 Mostra de performances, vídeos e instalações, em julho de 2007. Foi reperformada em Porto Alegre, durante o Festival Plataforma Performance, em 2010[4]. A reperformance vista não como repetição mecânica – a impossibilidade de tal por tratar-se de prática intersubjetiva e com a infinita potência de devir dos corpos – mas como reatualização. Recomposição com outros corpos e contingências.  Carta foi criada em torno de um texto manuscrito, na verdade uma cópia do livro Carta ao Pai, de Franz Kafka, onde alterei o gênero: quando havia masculino, era substituído por feminino, assim, tornou-se uma carta de filha para mãe. Esse texto era lido em voz alta, na íntegra, e foi acompanhado pela ação de urinar. Qual o significado dessa urina? Busquei construir o corpo e a ação com elementos que ressaltassem a fragilidade do ser humano, a ideia da potência do amor como força que pode salvar, mas, também, matar e a nossa compartilhada humanidade enquanto corpos feitos de carne, sangue e outros fluídos.
A urina  foi integrada buscando falar desta comunhão[5]. Aqui, era abrir os esfíncteres para gerar consciência de nosso corpo e afetos submetidos a forças titânicas (nossos próprios traumas?). Urinar para desconstruir ideia manipulada pela propaganda sobre a intocável positividade do amor. Podemos pensar ainda em dispersão como técnica de performar, com o intuito de obter o seu contrário – a condensação da atenção. Foco sobre este corpo em diluição através de sua urina  que se espalhava pelo chão, empapando as páginas da carta que por ali iam sendo abandonadas. Estavam abertos os poros e pulmões da performer,  em uma difícil sustentação dos braços, levada até o limite. Os presentes a esta performance com seus poros e narinas também abertos sentindo o cheiro de minha urina e escutando meu arfar, até o ponto da  insustentabilidade, quando se lançaram sobre meu corpo, abaixando os braços e desamarrando meus pés (fig. 01).



 
    Fig. 01. Claudia Paim. Carta. Performance, 2010.

Em Amálgamas,[6] há, como em Carta, a presença do texto. Nesta performance, a técnica da dispersão foi usada com objetos e narrativa. Duas grandes conchas eram colocadas nos ouvidos dos presentes após eu ter sussurrado para cada, uma pequena e densa história.  A ideia foi compor uma ação com uma fotografia que ficava exposta[7]. Esta é uma fotoperformance onde se vê uma mulher em fusão com o mundo. Faz parte de uma série chamada corpopaisagem, onde há um corpo vibrátil  em sua composição viva com o outro, nesse caso, a paisagem (fig. 02).

      Fig. 02. Claudia Paim. Corpopaisagem#1. Fotoperformance, 2012. 

Amálgamas é fotografia e performance. Aqui, o ato de sussurrar exigia uma aproximação dos corpos, o calor gerado pelo murmúrio no ouvido era potencializado por uma determinação em tentar entender a micro-história que não fora construída linearmente a partir da ideia de início-meio-fim. Ao escrever esse texto, pensei na apreensão de um fragmento pulsante de vida. Transcrevo o mesmo: “...ela vive à beira mar...Em uma praia imensa e deserta... Ali não há nada além de navios naufragados... e margaridas amarelas... Aos seus ouvidos o barulho do mar... às vezes é canção... às vezes é ruído...”. Depois de sussurrar, ao colocar as conchas nos ouvidos de quem havia permitido que eu me aproximasse, buscava criar para ele ou ela uma sensação de estar imerso em seu próprio mundo  sonoro. Ficava ali, segurando as conchas até perceber que se estabelecera a escuta desta sonoridade tão própria (fig. 03).
 As sensações dos corpos juntos, do som compartilhado com sutileza, propiciava uma atitude  permissiva e receptiva para desfrutar do prazer proposto pela performance – todos, performer  e presentes, tinham de estar com os poros abertos. O manejo do tempo também é um dado técnico importante: havia uma calculada distensão temporal, toda a ação foi realizada de maneira mais lenta do que as ações cotidianas

  
     Fig. 03. Claudia Paim. Amálgamas. Performance, 2013.  
Seguindo com a observação do corpo de poros abertos, este corpo vibrátil  é evocado também nas outras fotoperformances da série corpopaisagem. Estas imagens foram produzidas para dar conta da percepção que tinha e tenho de ser também paisagem.  Como possuo duplo domicílio, estou em permanente deslocamento entre Porto Alegre e Rio Grande. Assim, minha atenção começou a ser mobilizada pela paisagem, além disso, nesta última cidade há a imensidão lisa dos espaços do litoral sul e do pampa. Flávia Azambuja, ao ver estas fotoperformances, questiona “com os pés no chão onde pousamos ou repousamos nossos olhos...?” (AZAMBUJA, 2014, p.52). Passei a me sentir tão paisagem quanto o que meus olhos viam. Daí nasceram fotoperformances onde busco me dispersar no mundo formando com ele um único corpo. Sou eumundo. (Fig. 4).

 Fig. 04. Claudia Paim.  corpopaisagem#2. Fotoperformance, 2012.
Dispersão
A palavra dispersão nos remete à ideia de fragmentação, de dissolução. Um vento súbito que entra pela janela e dispersas os papéis que estavam sobre a mesa ou um sopro que dispersa o pó acumulado sobre um livro esquecido em algum canto. Entretanto, também estar disperso significa não ter a atenção focada. Não estar concentrado. Olhar as nuvens pela janela e juntar-se a elas quando nosso corpo permanece sentado dentro de uma sala qualquer.
Assim, para começar a falar sobre dispersão como técnica de performance visando a concentrar a atenção do outro em minha ação, apresento por antinomia um trabalho onde utilizei a técnica contrária: da acumulação. Na performance tenho medo de quem só quer o meu bem[8] , o acúmulo foi pela repetição da ingestão de alimentos. Acumular em um mesmo corpo que come desenfreadamente e fala, com a boca cheia, uma coleção de frases ouvidas por muitos de nós sobre as qualidades da  alimentação. Um corpo que chama atenção e gera desconforto no outro pelo absurdo da compulsão de alimentos misturados, sem regras. Esse corpo devorador e que profere  uma série de enunciados dos cuidados amorosos para com o corpo infantil faz surgir, como cintilação,  a constatação de que o amor também é perigoso. Ele pode ser nefasto e fatal (fig. 05).

 
     Fig. 05. Claudia Paim. tenho medo de quem só quer o meu bem. Performance, 2009. 

Agora já sublinhado o que entendo por acumulação como técnica, começo a falar da dispersão. Ela também pode ser vista como técnica. Possibilidade 1: dispersar o próprio corpo. Urinar, como já citei anteriormente, na performance Carta. Ou cuspir, como em Fluoxetina. Expeli estes líquidos  produzidos pelo meu corpo e deixei-os em fluxo pelo mundo. Usei o outro como agente de minha dispersão. Ao mesmo tempo em que provoquei sua hesitação, pois não estamos acostumados a lidar com as secreções alheias, a não ser em momentos de intimidade ou cuidados higiênicos (durante relação sexual ou ao cuidar de um bebê, são exemplos facilmente reconhecíveis). A técnica da dispersão foi aplicada para obter concentração de atenção do outro sobre meu corpo e sobre seu próprio corpo. Também exigi respostas – participar ou não: questionei acerca de sua potência e corporeidade. Usarei a performance Fluoxetina[9] para demonstrar estas ideias.
Fluoxetina foi um trabalho no qual busquei a participação ativa dos presentes de duas maneiras: pela aceitação ou não de um objeto e pela escuta[10] . Uma breve descrição pode ajudar a entender: a performer usando um vestido de festa, em veludo preto, entra no espaço, descalça as sandálias de salto alto (despir-se de convenções). Olha ao redor e fala calmamente: “eu tenho medo” (comungar nossa humanidade). Com uma tesoura corta um pedaço do vestido (fragmentação de si), cospe nele e o dobra delicadamente, formando um pequeno embrulho de sua baba. Escolhe alguém e entrega-lhe na mão o pacote com sua saliva (dispersão), ao mesmo tempo sussurra ao seu ouvido algum de seus temores que acredita possa ser compartilhado/vivido/experimentado pelo outro (composição com o outro). Vira-se e volta para o centro do espaço repetindo a ação até que quase não reste mais nada de sua roupa (fig. 06). É importante dizer que cada embrulho foi acompanhado por segredar medos distintos, quase não houve repetição. O que foi ativado aqui com a dispersão de meu corpo?   Um foco de atenção e a “afetação recíproca” entre mim e o outro (PELBART, 2006, P. 73). 

 
     Fig. 06. Claudia Paim. Fluoxetina. Performance, 2013. 
Esta composição pulsante com o outro é fundamental para romper com o sistema de modelos a serem seguidos. Ao invés de identificação com imagens idealizadas, produzidas e divulgadas para vampirizar ou cafetinar nossas forças criativas (ROLNIK, 2006, p.22), abro meus poros e exijo o mesmo do outro através de sua tomada de  decisão (ou pega o embrulho e escuta, ou me rejeita). Corpo vibrátil, poros abertos. Com isso, busco estabelecer composições instáveis entre corpos simultâneos.   A instabilidade é inerente, pois em uma relação viva há movimento contínuo, o que aqui também chamo fluxo: na composição com o outro, necessariamente as âncoras devem estar levantadas para que possamos nos mover juntos. É a imagem da dança: dançar junto com alguém acontece no próprio ato. Dançando é que os corpos se afinam.
As expressões do “corpo vibrátil”, segundo Suely Rolnik, são “culturais e existenciais engendradas numa relação viva com o outro e que desestabilizam a cartografia vigente” (ROLNIK, 2006, p.16).  Esse “corpo vibrátil” é aquele que se compõe com a alteridade. Por isso, apresento, aqui, a ideia de corpo com os poros abertos: ele escava em si sua potência e agencia-se com o outro. Para a performance Fluoxetina havia poucos elementos além do corpo da performer: vestido, sandália e tesoura. Os corpos presentes eram ativos, conscientes, vibrando pela tensão provocada ao não saber se  seriam escolhidos ou não para escutar medos sussurrados ao pé do ouvido, pela sensação de proximidade e de calor, pela espera suspensiva e pela curiosidade sobre o que iria escutar. Já meu corpo capturava cada olhar, gesto e postura intuindo os medos a serem compartilhados. 
A ideia de dispersão também é encontrada como técnica para prender a atenção na performance de Mickken Diogo, chamada Gift em Inglês, Gift em Alemão[11].  Nesse trabalho, o artista caminha entre as pessoas presentes, ele tem nas mãos um pequeno saco de tecido com flores naturais, a cada tanto o abre e arrota estrondosamente dentro. Depois, pega carinhosamente uma das flores e oferece a alguém. Repete inúmeras vezes. O que é inquietante nessa sua ação é o contraste entre a delicadeza de oferecer flores e a força do arroto que as cobre. Um composto estranho que fez com que algumas pessoas, logo após receber uma flor, jogassem-na fora abruptamente. O performer usou a dispersão tanto do objeto-flor quanto de seu corpo através da emissão ruidosa  do ar. Quantos corpos ele ofereceu? O que exatamente cada um estava recebendo? A dispersão destes corpos provocando um estranhamento no corpo cotidiano –  o corpo conformado. Despertando a atenção sobre os limites e usos das convenções sociais (fig. 07).

 
     Fig. 07. Mickken Diogo, Gift em Inglês, Gift em Alemão. Performance, 2014

Até aqui apresentei proposições que tratam, sobretudo, da dispersão do corpo do performer. Agora, a possibilidade 2: dispersão de outros corpos. Posso, então, pensar a técnica da dispersão aplicada a objetos apropriados, como na performance Encantamento – versão séc. XXI, ou ações com objetos que possuem seus  próprios caminhos de circulação, como é o caso dos cartões de visita.  Em Encantamento – versão séc. XXI[12], eu distribuí aproximadamente uma centena de sapos de cerâmica, destes que são usados nos jardins. No entanto, tratarei disso a seguir, ao falar da potência da performance realizada na rua. 
Cartões de visita são usados com frequência durante encontros sociais e profissionais. Habitualmente, eles são oferecidos como suportes para informações de contato do portador. Assim, são feitos para circular, dispersando-se pelo mundo. Esta é sua função. Hélio Fervenza é um artista que se vale dos mesmos criando uma situação invulgar: oferece dois cartões de apresentação a cada vez, um com seus dados e outro apenas com o nome de algum deserto. Para Fervenza, “com a entrega do cartão, espaços podem ser configurados: espaço da relação interpessoal, social, profissional e o espaço do imaginário   ligado ao nome/evocação dos desertos” (FERVENZA, 2003, p. 49). Assim, o que ele promove é “um espaço que surge da inter-relação entre as pessoas” por meio desta alteração de situação e objeto ordinários  (IBIDEM). Os cartões seguem seus fluxos. O artista tem uma percepção muito singular sobre esta sua proposição e compartilho de suas inquietações e objetivos em um trabalho também com objetos-cartões.
Em minha proposta, uso cartão de visita por ser um objeto que naturalmente se dispersa. Nele há, de um lado, as informações habituais, de outro há um autorretrato onde apareço de costas e quase sem cabelos. Costumo entregá-lo normalmente e com a foto virada para cima. As reações são quase sempre de hesitação frente ao inusual da imagem e é, a partir de então, que aquilo que me interessa nesse processo surge:  o aquecimento do contato pelas perguntas e pela conversa que se estabelece. Em geral, a situação mecânica se torna recoberta por humanidade. Então, a escolha dos cartões é devida a sua finalidade e movimento inerentes ao uso. Corpos que se dispersam. (Fig.08)

 

Fig. 08. Claudia Paim. Autorretrato. Fotografia em cartão de visitas, 2010.



Corpos que produzem esfera pública
Agora passo a indagar sobre a potência dos corpos que performam em “espaços cotidianos”, fora das quatro paredes dos tradicionais espaços de visibilidade para a arte – tais como museus, centros culturais e galerias (PAIM, 2012, pp.7- 9). Performances que produzem esfera pública. Esta, de acordo com Alexander Kluge e Oskar Negt, em Esfera pública y experiencia. Hacia un análisis de las esferas públicas burguesa y proletaria, é o elemento básico para a experiência do intercâmbio social. Assim, “a esfera pública é o que poderíamos chamar a fábrica do político: o lugar onde se produz” (In: BLANCO et al, 2001, p. 270).
As performances que agora apresento indagam sobre temas como alteridade e gênero, usando a rua ou um espaço pouco convencional como, por exemplo, um bar no centro de uma grande cidade. Bar Itatiaia é o nome do lugar e da performance que  Ana Tomimori realizou em 2009, em Belo Horizonte. Foi reperformada em Fortaleza, em 2011, com o nome de Bar. A artista, de calcinha e sutiã cor da pele, permaneceu durante uma hora dentro de uma vitrine usada para guardar alimentos (fig.09). Não havia nenhuma explicação, nenhuma placa, nada que servisse para apaziguar a inquietação dos fregueses por ver um corpo em um lugar que, normalmente, não ocupa. O que significa este corpo feminino oferecido como um produto a mais? Por colocar-se “como um pedaço de comida, imóvel em uma vitrine”, a artista diz que acredita ter gerado  “um confronto com a imagem super produzida e idealizada da mulher que estamos acostumados a ver nos outdoors, cartazes, televisão, internet, entre outros meios de comunicação” (TOMIMORI, 2011, p. 62). Não há como saber o que cada um produziu de sentido, mas certamente muitas perguntas surgiram[13]
 
  
 Fig. 09. Bar. Ana Paula Tomimori. Performance, 2011. 
 
 Em Inundação, já tratada anteriormente, cabe sublinhar o uso de meios de transporte urbano como o lugar escolhido pelo coletivo Chicamatafumba. Foi o local onde por meio da emissão de uma paisagem sonora, alteramos não apenas o ambiente, mas sobressaltamos a percepção sobre o mesmo. Interrompemos a maneira desatenta de estar em um espaço/tempo banal, convocamos os sentidos através da ativação da escuta para aquele momento. Tanto como em Bar, não havia anúncios para a ação. O intempestivo atuando a favor do contato intersubjetivo: estranhos que começavam conversas na busca de explicações para o sem-sentido da ação. Promoção de contatos, mesmo que fugazes, onde impera o isolamento individual. Abaixar a guarda, gozar o instante.
Encantamento – versão século XXI também já foi abordada pela dispersão como técnica,  pois eu oferecia sapos de cerâmica aos transeuntes. Busquei reciprocidade de corpos. Em prol de maior clareza, remeto à gênese dessa performance. A partir de 2011, passei a indagar histórias infantis como instrumentos que constroem o corpo. Interessei-me pela construção de gênero, o corpo feminino atravessado pela narrativa. Assim, li diferentes versões de contos e detive-me em “A princesa e o sapo”. Na versão dos Irmãos Grimm, a princesinha – cansada dos reiterados pedidos de atenção do sapo, que exigia que ela cumprisse sua palavra em troca da devolução da bola, devendo não só  levá-lo consigo para o castelo, mas brincar, comer juntos e, por fim, colocá-lo em sua cama – toma-o pela perna e o joga contra a parede. Foi então o choque, e não o beijo de transformador amor, que quebrou o feitiço.
Passei a buscar uma atualização em performance para a versão dos Irmãos Grimm. Queria gerar perguntas sobre porque são as mulheres que beijam os animais asquerosos? Realmente temos o poder de transformá-los? O amor é transformador? Assim, criei a performance Eles não foram felizes para sempre[14]. Nela, começo com o beijo em um sapo de cerâmica, depois o olho e, ao verificar sua teimosia batráquia (pois não virava príncipe), usando martelo, machado e outros instrumentos, o reduzo a pedaços. Fiz isso com cem sapos em uma performance que durou duas horas, aproximadamente. Depois passei a refletir sobre a necessidade da princesa/mulher ser feliz apenas com o príncipe/homem. E se eu gozar com os sapos? Com as rãs? Quem é o sapo e quem o príncipe? Este último não é tão construído como a princesa? Dessa forma, elaborei uma reação a estas questões na fotoperformance e na videoperformance A felicidade existe[15] (fig. 10).

 
Fig.10. Claudia Paim. A felicidade existe. Fotoperformance, 2011.
Partindo da performance Eles não foram felizes para sempre, busquei ampliar seu alcance elaborando uma versão para ser realizada na rua. Desejava outros corpos e espaços cotidianos. Nada da mediação que um espaço ou um evento artístico arma entre os corpos (um é o corpo do artista, o outro não, e arte é o que o primeiro faz). Nasceu Encantamento – versão séc. XXI, realizada no centro de Porto Alegre em um largo onde passam milhares de pessoas diariamente (fig. 11). Para compartilhar as minhas perguntas, modifiquei a ação: coloquei em círculo, no chão, quase cem sapos cerâmicos. Posicionei-me no centro e tomei o primeiro sapo nas mãos. Exibi o mesmo para todos os curiosos que se juntaram ao redor. Não respondi perguntas nem proferi palavra alguma (já anteriormente havia decidido pelo silêncio por saber de sua potência instigadora). Beijei o sapo, olhei-o e voltei a  beijá-lo e acariciá-lo. Olhei-o novamente e ante sua permanência como sapo, o quebrei jogando  ao chão. Tomei outro sapo e repeti a ação, mas desta vez, ao invés de quebrá-lo, o entreguei a alguma das pessoas paradas por ali, às vezes inclusive a homens. Cada uma delas decidiu sua participação: pegar e quebrar, pegar e guardar, não pegar. Assim, alternei entre quebrar eu mesma e entregar a decisão a outros, até não restar mais sapos.

  
Fig. 11. Claudia Paim. Encantamento – versão séc. XXI. Performance na rua, 2012.

Havia pensado finalizar Encantamento – versão séc. XXI, simplesmente com ir embora do local. Entretanto, à medida que o número de sapos diminuía, eu sentia que a energia crescia e que o círculo se fechava cada vez mais ao redor de meu corpo. Assim, ao invés de quebrar o último sapo, apenas o deixei no chão. Várias pessoas se precipitaram sobre o mesmo enquanto eu saí caminhando. A surpresa final veio por conta de ter sido seguida por muitas pessoas que gritavam e exigiam uma explicação: “afinal porque tu fazias isto?”, “porque não falava?” e “porque não pedia nada?”.
 Este relato eu o trouxe, pois acredito que ele evidencia a potência da performance realizada na rua. Ela produz esfera pública em um lugar onde os corpos estão isolados e de passagem. O registro em vídeo, eu o editei, deixando algumas das falas produzidas, penso que ele dá uma noção ampliada do que estou falando[16].
Encerro buscando ter conseguido argumentar sobre a performance como promotora de abertura de poros em corpos, muitas vezes, anestesiados. Sobre a possibilidade de pensar esta prática artística como tendo um repertório tanto conceitual quanto técnico e processual. Finalmente, sobre a performance como um meio gerador de conexões, como ativadora de inconformidades e como prática potencialmente política.

REFERÊNCIAS
AZAMBUJA, Flávia L. Percursos poéticos: relações entre produções artísticas contemporâneas e Rio Grande do Sul. Trabalho de Conclusão de Curso. Rio Grande: Instituto de Letras e Artes/ FURG, 2014.
BLANCO, Paloma et al. (org.) Modos de hacer: arte crítico, esfera pública y acción directa. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2001.
FERVENZA, Hélio. O + é deserto. São Paulo: Escrituras Editora, 2003.
PAIM, Claudia. Evidências do corpo. Disponível em: <http://claudiapaimperformance.blogspot.com.br/p/textos-sobre-performance.html>, acesso em 21 dez. 2013.
____________. Táticas de Artistas na América Latina: coletivos, iniciativas coletivas e espaços autogestionados. Porto Alegre: Panorama Crítico, 2012.
PELBART, Peter Pál. “Da função política do tédio e da alegria”. In: FONSECA, Tania M.Galli e KIRST, Patrícia G. (org.). Cartografias e Devires: a construção do presente. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.
ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2006.
TAYLOR, Diana. Acciones de Memoria: performance, historia y trauma. Lima (Peru): Fondo Editorial de La Asamblea Nacional de Rectores, 2012.
TOMIMORI, Ana P.W. Pequenas pausas do silêncio: o corpo como fala na performance. Trabalho de Conclusão de Curso. Porto Alegre: Instituto de Artes/UFRGS, 2010.  Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/28007/000768011.pdf?sequence=1>, acesso em 21 dez. 2013.

_________________

[1]     Coletivo formado por Ana Tomimori, Claudia Paim, Leandro Machado e Thaís Leite. Desenvolveu uma série de ações performáticas em meios de transporte público urbano e interurbano, cobrindo a área da Grande Porto Alegre, durante 2009 e 2010.
[2]     Disponível em <chicamatafumba4.blogspot.com>
[5]     Há um texto onde já tratei desta performance.  Disponível em: <http://claudiapaimperformance.blogspot.com.br/p/textos-sobre-performance.html>
[6]     Performance realizada durante a exposição Modos de Ser e Estar no Mundo, em Porto Alegre, Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, Instituto de Artes da UFRGS, em novembro de 2013. Disponível em < http://vimeo.com/84332182 e http://www.youtube.com/watch?v=Vefpbadare4>

[7]     Fotografia colorida, papel matte, 116 x154 cm.
[8]     Apresentada durante a Manifestação Internacional de Performance - MIP 2, em Belo Horizonte, 2009. Registro disponível em:  http://vimeo.com/16059785
[9]     Fluoxetina é uma substância usada como antidepressivo e para tratamento de síndrome do pânico.
[10]   Performance realizada durante o Encontro de Performance ruído.gesto 2013/corpo estranho, em Rio Grande, RS Este evento é coordenado por mim e pelo artista Ricardo Ayres, já em sua segunda edição e que visa ser uma ocasião de confluência para artistas que trabalham a performance tanto presencial, como foto e videoperformance, na região sul.  Vídeo disponível  em: < claudiapaimperformance.blogspot.com >
[11]   Artista de São Paulo, atualmente vivendo em Rio Grande. Esta performance foi apresentada no espaço Casa da Alice, em Pelotas-RS, em 05 de fevereiro de 2014.
[12]   Performance realizada durante a Semana Experimental Urbana – SEU 2012, em Porto Alegre. Registros disponíveis em:< http://claudiapaimperformance.blogspot.com.br/search?updated-min=2014-01-01T00:00:00-08:00&updated-max=2015-01-01T00:00:00-08:00&max-results=5>
[13]   Vídeo disponível em < http://www.youtube.com/watch?v=dw4OuYCQC2g>
[14]   Realizada em 2011, disponível em:  <http://vimeo.com/42648727>
[15]   Disponível em: < http://vimeo.com/51575622>
[16]   Disponível em: < http://vimeo.com/84326362>


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