(Artigo a ser publicado nos Anais do
I Seminário Internacional Literatura, Imaginário e Cultura e do
I Seminário Internacional Vozes Femininas e escritas do Eu
2015 - FURG, Rio Grande)
TEXTOS E VOZ NA ARTE CONTEMPORÂNEA
I Seminário Internacional Literatura, Imaginário e Cultura e do
I Seminário Internacional Vozes Femininas e escritas do Eu
2015 - FURG, Rio Grande)
TEXTOS E VOZ NA ARTE CONTEMPORÂNEA
Resumo
Este artigo é uma reflexão sobre
a presença de textos e de oralidade na arte contemporânea. São analisadas
algumas performances nas quais a leitura de fragmentos textuais é responsável
pela captura da atenção do público e pela provocação de sensações que levam à
percepção das naturalizações de ideias a que estamos submetidos. Também é
observado um conjunto de propostas de arte sonora para mídias móveis, chamado
Acontecimentos Sonoros. São escritos que visam estimular o ouvinte a elaborar
imagens mentais que serão formadas com as vivências de cada um. A partir de
percursos realizados, a observação da paisagem e do entorno social é o material
com o qual são compostos pequenos textos ou apenas frases poéticas esparsas que
são lidos e gravados em um smartphone
e imediatamente compartilhados. Podem, ainda, ser utilizados recursos básicos
de sonoplastia que o ambiente ofereça. No presente texto, estão conceitos, tais
como a voz como ato performático, de Celina Nunes de Alcântara, e o
acontecimento, de Deleuze. Este trabalho
alinha-se com o imaginário e poéticas da contemporaneidade por trabalhar de
maneira híbrida com a arte, a literatura, fragmentos e o uso da tecnologia
digital.
Palavras-chave: voz; performance; acontecimento
sonoro; arte contemporânea
1. A materialidade da
voz
Como pensar a voz em proposições
artísticas contemporâneas? Este artigo é um esforço neste sentido. A partir de
três eixos, será realizada uma reflexão que aproxima texto, voz, performances e
proposições sonoras tratando de analisar trabalhos da autora, bem como de
outros artistas.
Fernando Ribeiro[1]
realizou a performance Eu Prometo durante o evento Paralelo 31,
em Pelotas, RS. Ela foi apresentada junto ao prédio do Centro de Artes da
UFPel, onde o artista se colocava de joelhos entre um balde com água fervente e
outro balde com gelo. Diante dele, havia um grande vaso de vidro transparente.
Ribeiro foi calmamente despetalando várias rosas brancas e colocando as pétalas
na água fervente. Enquanto agia, ia dizendo “quando eu falo, 'eu prometo', eu
prometo uma ação a alguém”. Sua fala era, sempre, uma variação desta frase.
Depois, ele colocava as mãos em concha na água quente, retirando pequenas
porções que despejava no vaso. Intercalava, mergulhando suas mãos no gelo.
Houve repetição do texto e da ação até que o vaso estivesse completamente
cheio. Após, ele colocou a água com odor de rosas em um pulverizador e borrifou
o espaço e o público impregnando a todos com o suave aroma. Por último, despejou sobre seu corpo a água de
rosas restante.
Nessa performance, o que ativa
várias questões é o texto que tem um traço de redundância em relação à ação:
ele promete e age. Fala repetidas vezes este texto conciso. Sua voz soa como
uma promessa, um aviso de algo que, mais do que anunciar o que virá, sublinha a
ação que vemos. Há dor e suspensão nos momentos iniciais quando observamos a
sensação de queimadura que o performer sente ao colocar suas mãos na água
extremamente quente. Compactuamos com seu breve alívio ao mergulhá-las no gelo
– conforto logo transformado em dor novamente: agora o que queima é o frio.
Assim, a sua promessa de ação é imediatamente cumprida diante de nossos olhos.
Ou mais do que isso, pois sentimos no nosso corpo as sensações que ele tem e
que presenciamos. Um texto curto que não oferece mais do que vemos. Repetido de
forma circular e com poucas e controladas variações. O corpo acompanhando a
repetição do texto com seu próprio agir. É a ação que hipnotiza, mantém-nos
suspensos e em silêncio diante desse corpo que busca, com esforço, encher o
vaso até seu transbordar. Ansiamos pelo extravasamento do líquido e somos
cúmplices da dificuldade necessária para tal.
A voz, qual seu papel? Se
fecharmos os olhos e, sem ver a ação desempenhada pelo performer, quedaríamos
suspensos apenas pela escuta? Que sensações nos invadem? É importante ressaltar
que Fernando Ribeiro não usava nenhuma entonação dramática específica. O texto
foi dito de uma maneira bastante objetiva e despida de características
emocionais. Uma voz “fria”. No entanto, se pensarmos em frieza, já reconhecemos
a voz como matéria: um corpo dotado de qualidades, uma materialidade para a voz
na performance.
Nas artes visuais, não se
encontram com tanta frequência, como no teatro ou na música, por exemplo, reflexões
sobre a voz. Em contrapartida, há diversas investigações teóricas e
teórico-práticas sobre as relações entre texto e imagem. Todavia, aqui, o esforço é no sentido de
pensar sobre a voz como matéria e como gesto performático.
Gilberto Icle e Celina
Alcântara, que falam a partir do trabalho do ator, problematizam a voz como
elemento que pode e tem de ser analisado para além da expressão, sobretudo ao
se observar práticas do teatro pós-dramático onde a materialidade da voz deve
ser emancipada da relação semântica do texto. Esse pensamento pode ser trazido
para o campo da arte da performance. Para os autores, a voz é tomada “como
lócus e potência de acontecimento corpóreo vocal” (2011: 130). A voz do
performer pode ultrapassar o sentido do que ele diz ou vocaliza, mas a
experiência de sua presença é fato. A experiência da enunciação: da emissão da
voz daquele que fala. Há ainda a experiência da escuta. Necessariamente há dois
corpos em interação: aquele que fala (mas também se ouve) e aquele que escuta
(mas também fala por suas atitudes, energia e posturas). Para os autores em
questão, a voz é “antes de tudo uma experiência, uma experiência de voz, uma
voz experiência” (IBIDEM). O corpo de quem assiste e participa de uma performance
onde há uso da voz, é pela voz também tocado. Pelo que nela transparece para
além do sentido do que é dito. Pela sua clareza ou opacidade, pelo ritmo, pelo
espaço que ela ocupa. Em Icle e Alcântara, vemos que
Afinal,
a voz não é apenas a extensão do corpo,
ela é corpo, constitui-se por qualidades psicofísicas que podem ser
dimensionadas por características comumente atribuídas ao corpo: variação de
tonicidade, níveis diferenciados de energia, possibilidade de transformação a
partir de um trabalho técnico preciso, entre outras (2011: 132).
Pode-se observar a voz em sua
corporeidade na instalação Traduzindo, da autora, realizada no Instituto
Goethe, em Porto Alegre, em 2003. Juntamente com a consideração da mesma como
ato performático. Para Alcântara,
[…]
pensar a voz como ato performático é pensá-la na sua complexidade de coisa
escrita, falada, ouvida, percebida e constituída pelos sujeitos desse ato. Mas
também como ação que ocorre no tempo e no espaço, reunindo expressão e fala
juntas numa situação transitória e única.
[…]
parece indispensável compreender a voz como a extensão de todo um sistema
corporal do qual ela é um elemento constituidor e constituinte (2010: 43).
A instalação Traduzindo,
era composta da colagem, no saguão do Instituto Goethe, de centenas de adesivos
produzidos a partir daqueles vendidos no comércio e que dizem que devemos
sorrir, pois estamos sendo filmados. Foi feita uma apropriação da arte desses
adesivos e uma alteração do texto para “cuidado: você está sendo filmado”. Foi
invertido o sentido da boca da imagem sorridente, que passou a se apresentar
triste (Fig.1).
Com estes adesivos,
foram cobertas duas paredes, em um ângulo de 90º, do espaço; ali havia também
uma caixa de som que emitia uma voz que sussurrava fragmentos de frases
encontradas em publicidades de empresas de vigilância. Ou seja, esse texto foi
uma colagem de outros de autoria desconhecida. Esse dado é relevante porque,
mesmo não sendo um texto autoral, a fragmentação e a escolha dos pedaços com os
quais se construiu essa trilha adquire um tom próprio. Eram cerca de 20 frases e expressões curtas,
tais como “para sua segurança” e “resposta armada imediata”, que eram lidas de
maneira impessoal. Optou-se por não interpretar, na leitura, com variações de
intensidade dramática para que o impacto do texto se desse por sua significação
e apresentação. A voz era sussurrante. Essa colocação objetivou elaborar uma
experiência de escuta que remetesse a avisos de situação de perigo, mas quando
o grito não é o adequado, mas o alerta que busca passar despercebido e que
carrega, talvez, maior urgência em ser ouvido.
Fig 1. Claudia Paim. Cuidado, adesivo, 12 x 20 cm.
Além da situação da
voz sussurrante, o texto era ouvido de maneira circular, não havia linearidade:
nem início, nem fim. A escuta era ininterrupta, gerando uma experiência de
claustrofobia. A repetição como acúmulo de informação, mas também de sensações,
algo que vai se adensando e instalando nos corpos. A experiência de que o tempo
e o espaço se tornam mais espessos e menos transparentes, a premência em
afastar-se de uma situação que se torna um aprisionamento. O sussurro como um
som que persegue os corpos, infiltrando-se por todos os cantos do espaço. Uma
prisão sem paredes.
Assim, pode-se
pensar esta voz experiência: como um corpo que afeta outros corpos e que foi
construída conscientemente para tal, para gerar as sensações apresentadas, para
provocar com sua presença alterações nos corpos de quem percorria a instalação.
O tom sussurrante e monocórdio que gerava maior sensação de ser uma escuta
paradoxal pelo contraste com a rudeza do sentido do texto. A repetição e o
volume baixo da emissão não pretendiam que a voz tivesse relação de ruptura com
o espaço, pelo contrário, de certa continuidade perversa que promovia alteração
nos corpos, mas de uma forma bastante gradual. Talvez essa seja uma relação
bastante usual nos meus trabalhos: não buscam instaurar-se subitamente, mas
justo pelo seu contrário – paulatino, gradual, sutil.
Até o momento
buscou-se promover uma reflexão sobre a voz como material, tanto na performance
de Fernando Ribeiro como na instalação Traduzindo, de Claudia Paim, assim
como ato performático. A voz foi então observada não apenas na sua relação de
emissora de um texto portador de sentido, mas, ainda, como um dado físico e
concreto, dotado de qualidades e com as quais também se operou nos trabalhos
referidos, buscando a construção de poéticas específicas.
2. A presença de
textos em performances – poéticas da contemporaneidade
Pode-se refletir
acerca de uma recorrência nas poéticas contemporâneas: quando com o uso experimental
das tecnologias disponíveis aos artistas há, ainda, o hibridismo entre práticas
criativas para a construção de uma poética. Observa-se que, pelo menos, desde o
início do século XX e, a partir dos anos 70, há cada vez mais, no cenário
artístico, poéticas impuras, ou seja, proposições artísticas construídas com
técnicas e conceitos que se misturam. Um exemplo pode ser o recente trabalho da
autora, chamado Lamento Mudo, apresentado em Pelotas, durante o evento Paralelo
31. Lamento Mudo foi constituído de uma cristaleira de madeira e
vidro que ficava no espaço expositivo com as portas abertas para que o público
pudesse se aproximar, manusear e se apropriar das fotografias que estavam ali
disponíveis. Além de 300 cópias de um total de 20 imagens de detalhes de esculturas
em mármore nas quais o tempo havia deixado marcas (tais como corrosões e
fraturas) havia nas prateleiras louças trincadas, flores secas e marcas da
ausência deixadas por vazios na poeira acumulada. As fotografias foram
impressas em três tamanhos distintos: 13x18cm, 10x15cm e 3x4cm. O primeiro em
uma referência às imagens colocadas nos porta-retratos para a preservação da
memória; as fotos 10x15cm são do tamanho usual dos cartões postais (também em
uma alusão à lembrança) e, as menores, em uma clara relação com as fotografias
usadas nos documentos e que visam à identificação do portador. Assim, para a
construção dessa proposta, havia móvel, objetos e fotografias. Essa situação de
soma, de inclusão, de impureza, de hibridismo e de construção com elementos
díspares é bastante usual nas poéticas da contemporaneidade.
Agora, serão
analisadas duas performances onde se observa o hibridismo entre texto e ação. Discurso
amoroso, performance de minha autoria, foi realizada em 2014, em Pelotas
(RS). A performer percorria calmamente o espaço onde acontecia o evento Casa
da Alice (espaço da artista e professora de Artes da UFPel, Alice Monsell)
e sentava-se na rua, próxima ao meio fio. Colocava, no chão, um coração de
porco que segurava na mão e olhava ao redor dizendo “me fizeste tua imagem e
semelhança e colocas-te na minha boca as tuas palavras. Mas nós não somos
iguais”. Logo após começava a bater na carne, violentamente com um martelo.
Depois de alguns minutos, levantava a cabeça, olhava ao redor e repetia a mesma
frase. Voltava a martelar. Essa ação se repetiu até o completo destroçamento do
coração. Então, a performer levantava-se e saía.
A repetição do texto
tem uma característica de oração ou mantra e, por sua circularidade, gera uma
concentração sobre o texto e densidade na ação. Esse texto foi composto com
dois fragmentos encontrados em escritos religiosos, a saber, do Gênesis e
Jeremias. Este dado é importante, pois o texto é uma apropriação. Não são
palavras de autoria da performer, mas das quais ela se apropria para a
construção da performance, bem como o próprio título da proposta que faz uma
referência ao livro Fragmentos de um Discurso Amoroso, de Roland Barthes. Aqui,
coexistiam ainda sentidos: de um lado, o discurso da religião, dispondo dos
corpos como imagem e semelhança de um deus, por outro lado, há uma interação,
talvez menos evidente, com a relação amorosa: onde muitas vezes ocorre um
amalgamento de dois corpos, duas subjetividades (em geral, não é relação
estável e necessita de esforços constantes para que se mantenha). Assim, tanto
no interagir com o corpo santo como com o corpo profano, pelo amor, pela
semelhança, somos engolfados e perdemos algo de próprio, trocamos propriedades
para deixar surgir um outro que nasce da e pela relação. Todavia, qual a
dimensão dessa troca? É troca com qualidades bem distribuídas? É troca? Qual o
preço? A quem serve?
Há ainda uma outra performance na
qual foi realizada a apropriação de texto. Carta foi apresentada duas
vezes, a primeira, em 2007, em São Paulo, e a segunda, em 2010, em Porto
Alegre. Essa performance foi criada a partir do texto da Carta ao pai, de Franz Kafka. Esta carta foi copiada à mão em papel
específico de folhas bastante finas. Houve uma alteração do texto original,
pois o gênero masculino foi trocado pelo feminino. Por exemplo, onde no
original Kafka escreveu “querido pai”, na cópia ficou “querida mãe”. Assim
pretendeu-se dar um maior alcance ao texto que, além de ser um ajuste de contas
de um filho com seu progenitor, transformou-se em uma carta de uma filha para
sua mãe. As dezenas de páginas eram lidas uma a uma, com voz controlada e esvaziada
de conotações emocionais. Esse uso da voz foi intencional: buscou-se uma tensão
entre o conteúdo expressivo do texto, que é bastante complexo e contundente,
com o corpo quase que “automatizado” da performer que repetia o gesto de ir
soltando as páginas no ar, para que elas deslizassem balançando suaves, até
acomodarem-se no chão ao redor do corpo.
Esta apropriação do
texto do Kafka não tem originalmente a intenção de falar acerca de plágio, mas
antes é uma homenagem à atualidade da reflexão do autor: sua carta ainda produz
sentido na crueza com a qual analisa um amor que esmagou o ser amado. O pai de
Kafka, por amor, queria um filho forte e enérgico – era assim que os homens bem
sucedidos deveriam ser. No entanto, conforme o autor, a mão de seu pai e seu
próprio material foram estranhos entre si. Assim, o resultado foi a
precarização do menino – ser frágil e sensível que não pode corresponder aos
desejos paternos. E isto não é universal? Esta maneira autoritária de amar não
é encontrada em diferentes contextos? Ela é ainda muito atual. Foi para
evidenciar essa potência de morte do amor que tal performance foi construída.
Foi uma forma de dizer que Kafka sobrevive nas relações contemporâneas.
A presença de textos
em poéticas contemporâneas verifica-se também de outras maneiras. Por exemplo,
no trabalho Lista de coisas brancas,
de Raquel Stolf. Essa artista, que vive em Florianópolis, além de trabalhos
onde há recorrência do uso da palavra em propostas visuais, tem trabalhado também
com proposições sonoras. Agora será observado seu trabalho Lista de coisas brancas – coisas que podem ser, que
parecem ou que eram brancas[2]. Essa lista de palavras é pela inter-relação
entre as mesmas que adquire maior potência poética. Não é um texto ficcional,
mas é o que seu próprio nome diz. Essa
lista teve diversos desdobramentos, na verdade, pode ser pensada como um
trabalho que foi sendo processado entre 2000 e 2003, resultando em CD, com
gravações de áudio e instalações onde convergem as palavras escritas com a
audição das mesmas. Aqui, vale pensarmos na multiplicidade que a artista
confere a esse seu inventário, pois, além da possibilidade de lermos as coisas selecionadas por ela, há áudios
onde se escuta sua voz sobreposta, dificultando assim o acesso ao sentido do
texto, entretanto, adensando a percepção da operação de inventariar que se dá
pelo acúmulo, pelo excesso. Alguns exemplos de suas coisas brancas são:
avalanche, arroz, toalha de mesa, isopor, caderno novo, tontura ... (Fig. 2).
Fig
2. Raquel Stolf. Detalhe da instalação no Torreão, na exposição individual Ruídos do branco,
em
Porto Alegre-RS, 2002. Arquivo de Raquel Stolf.
3 Acontecimentos Sonoros
Agora, serão abordadas outras
proposições artísticas onde o foco recai sobre a produção autoral de textos por
artistas visuais e o uso das tecnologias para a difusão de trabalhos onde a voz
é recurso fundamental e primeiro. Como o outro escuta? Como soa para o outro a
minha voz? O ouvinte interrompe sua rotina para realizar a escuta? A escuta
seria alguma forma de suspensão? Pausa acústica?
Acontecimentos Sonoros é um conjunto de proposições
sonoras de minha autoria. Vale ressaltar, primeiro, que é importante falar dos
processos de criação que têm me levado a utilizar a palavra escrita como
material criativo. Anteriormente, já foram abordadas algumas performances onde
havia a presença de textos e de voz. Alguns textos formados por apropriações e
aproximações de escritos anônimos ou de outros autores. No entanto, de agora em
diante serão trazidos textos “100% autorais”.
Além da escrita com finalidade
acadêmica que geralmente se pauta pela elaboração por meio de pesquisa e tem um
tom objetivo, de acordo com as demandas institucionais, tenho a prática da
escrita como anotação poética. Até o ano de 2014, esta escrita era bastante
íntima e, via de regra, não era trazida a público. Era como um componente
poético de processos criativos ou de momentos onde surgia a necessidade de
criar. Entretanto, eu não tomava estes textos como algo que tivesse validade em
si mesmo. Por nenhuma razão específica, a não ser a de não pensar no ato de
escrever como algo que pudesse ter a potência que buscava em minha prática como
artista visual.
Desde 2014 passei a produzir
textos de maneira mais sistemática. Assim, comecei a escrever em um caderno de
notas que foi, lentamente, adquirindo um volume de material textual e onde
havia ainda alguns elementos colados de forma despretensiosa: pequenas notas
fiscais, fragmentos de envelopes, entre outros. A escrita eram frases esparsas que
resultavam de uma elaboração tanto intelectual quanto emocional (percebendo-as
como instâncias presentes simultaneamente) e ainda pequenas ficções (que foram
criadas a partir da observação, durante caminhadas, das ruas e pessoas). Estas
últimas foram chamadas de pequenas histórias silenciosas e são uma busca
de criar sentido e produzir imagens por meio do texto.
Após alguns meses, retomei esse
material que foi retrabalhado: houve supressões de textos inteiros, reescritas
parciais, buscando maior potência poética, não apenas nas imagens apresentadas,
mas por um trabalho de observação da sonoridade e do ritmo das palavras. Esta
foi a gênese do livro Em torno da ausência (edição da autora, 2015).
Primeiro movimento para pensar a escrita como material artístico em minha
poética. Um trânsito, uma ponte entre as artes visuais e a literatura.
Deslocamento feito a partir do primeiro campo e talvez isso seja relevante de
ser enunciado, pois é dali que carrego meus referentes e métodos de criação.
Não pretendo colocar-me como escritora, mas como uma artista visual que escreve
– criadora em um processo de criação onde há o hibridismo e contaminação de
distintas práticas.
A artista Raquel Stolf novamente
é aqui evocada como uma possibilidade de diálogo quanto ao hibridismo entre
textos e imagens em sua proposição FORA [DO AR], de 2002-2004, que além de CD
com 33 áudios, apresenta material impresso composto por folhetos e encarte
(Fig. 3).
Fig. 3. Raquel Stolf. FORA
[DO AR], 2002-2004.
Publicação sonora: CD de áudio com material impresso
(cartões, folheto, encarte).
Conforme Raquel Stolf, “os 33
áudios do disco podem ser desdobrados em micro-intervenções, instalações,
ações, vídeos, desenhos e outros textos”[3].
Assim se evidencia o hibridismo na poética desta artista e a relevância da
presença da voz.
Quanto aos meios de comunicação
e seu uso por artistas? É um consenso que os artistas buscam experimentar com a
tecnologia que encontram disponível. Assim, conforme Briggs e Burke (2006), tanto
foi com a arte postal como com propostas que usaram o telefone ainda no século
XIX. A Arte Postal como uma rede de arte por correspondência, por meio do
correio, significando uma ampliação do espaço da arte, é a ideia central
defendida por Andreia Paiva Nunes (2004). O próprio rádio foi e é até hoje
também objeto de diversas propostas artísticas como, por exemplo, um programa
experimental radiofônico, chamado Questão de Gênero, de 60 minutos de
duração, de minha autoria, com intervenções sonoras e música, que foi criado
para ir ao ar pela Rádio da Universidade da UFRGS, no dia 08 de março de 2006,
dentro do Programa Histórias Musicais.
Era um conjunto de textos autorais que dialogavam com a música de Billie
Holiday[4].
O telefone e as propostas
criadas por artistas apresentando um uso criativo e não usual para o mesmo é
parte da pesquisa de Tiago Franklin Rodrigues Lucena (2009). Dele, é o estudo
sobre a Mobile Art ou m-art, como também é chamada.
Eclodem
hoje os Moblogs, literatura em SMS, wireless mobile games, smart mobs, flash
mobs: classificações de trabalhos produzidos com/para estes dispositivos
que usam esta conectividade como potenciadora da transmissão e da própria
experiência da arte. Mobile Art surge como um novo campo aberto pelo uso
dos aparelhos celulares e sua estrutura multi-redes em favor da arte (LUCENA,
2009).
Dentro da m-art é que
serão apresentados os Acontecimentos Sonoros, de minha autoria. Não é só
arte sonora, pois tem texto e seu sentido é importante, por esta razão também
não serão analisados apenas como Poesia Sonora, onde há um afrouxamento da
relação som/texto/significado semântico.
Para Deleuze, o acontecimento é
o seu próprio sentido. Ou seja, não há que buscar uma razão para o
acontecimento, pois ele é o sentido (2000). Acontecimentos Sonoros é um
conjunto de proposições sonoras que são produzidas e distribuídas com uso de
dispositivos móveis. De acordo com Raquel Stolf
Pensar um trabalho como proposição implica em concebê-lo como algo que não se dissocia de seu processo, como algo situacional e que pode circular em alguns contextos de um modo quase imperceptível e sutil. Proposições sonoras podem solicitar uma participação do corpo, de ações físicas,
como podem solicitar “atos mentais”, esperas e
outras situações, como modulações de escuta, propondo
experiências acústicas (2011: 321).
Assim, Acontecimentos Sonoros é um evento que
interrompe o cotidiano de quem recebe um arquivo de áudio e se dispõe ao ato da
escuta. Seu sentido reside em duas camadas que se conectam: o sentido do texto
e o sentido da experiência acústica (de escutar). São proposições breves,
carregadas de carga poética e sem nenhuma outra razão de ser, exceto a sua
própria produção (pois é trabalho de artista), o seu compartilhamento (que gera
a recepção) e a escuta. Evidente que
aquele que recebe essas proposições sonoras pode escolher entre ouvir ou não e,
ainda, entre quando ouvir.
Em geral, os Acontecimentos
Sonoros são compartilhados como mensagens inbox pelo serviço de rede social Facebook ou por meio do aplicativo de mensagens Whatsapp Messenger (software
para smartphones). São proposições
sonoras que surgiram como um desdobramento da produção de textos que vinha
realizando. Há alguns anos atrás, recebia SMS
(Short Message Service, é um
serviço de troca, via celular, de textos curtos, também chamados de torpedos)
do artista Leandro Machado. Eram mensagens breves e poéticas que geravam a
necessidade de responder com igual intensidade, entretanto, a partir de textos
que surgiam da observação daquilo que estava ao meu redor. Essa correspondência
sempre me instigou. Havia a surpresa de receber e a busca pela retribuição –
gerava-se todo um processo criativo disparado pelo e por meio do texto.
No ano de 2014, comecei
de maneira mais sistemática a registrar minha voz ao falar pequenos textos que
eram criados, geralmente, em situações de deslocamento. Havia um hábito de
carregar cadernos de anotações e canetas que foi sendo substituído por um smartphone com o qual além de gravar áudios,
realizava fotografias e vídeos. Do uso desse aparelho foi que nasceu a ideia de
compartilhar as proposições sonoras. Aos poucos, foi-se impondo a potência das
proposições sonoras mais do que as imagens fotográficas ou videográficas.
Comecei a perceber que meus textos eram produtores de imagens, com eles eu
dividia as sensações que tinha durante meus deslocamentos constantes (além de
viajar com frequência, por possuir duplo domicílio em cidades que distam quase
350km entre si, realizo caminhadas e ando de bicicleta todas as semanas).
Propor uma experiência
de escuta de um texto poético é um ato subversivo? Interrompe o cotidiano?
Produz algum choque? Traz as sensações para o momento presente de cada escuta?
Creio que Acontecimentos Sonoros torna o momento da escuta um acontecimento – o sentido é a própria coisa:
ato e experiência. Daí foi que surgiu a adoção do nome de Acontecimentos
Sonoros para este conjunto de proposições que está ainda sendo trabalhado, em
processo.
Conscientemente, entendo
esse projeto como uma diluição do fazer artístico na vida cotidiana; não é uma
conjunção de arte e vida, mas, sim, uma atitude de vida como arte. O cotidiano,
a própria vida em suas minúsculas ações e momentos é transformada em arte que é
dividida com algumas pessoas. Esse compartilhamento nada tem da ideia de
grandes proporções. O público que tem acesso aos Acontecimentos Sonoros
deve ser pensado em uma escala íntima e pessoal. Nada de cifras com muitos
dígitos, mas o contato entre boca e ouvido possibilitado por uma mídia móvel. A
atualização da poesia em um momento ordinário (talvez assim o tornando
extraordinário). Situação efêmera e potente.
A seguir alguns exemplos
de textos curtos que fazem parte dos Acontecimentos Sonoros:
1. há algo que
transtorna na imensidão branca do Etna. Um vento que assombra as árvores.
Apavoradas, agitam seus galhos deixando tombar, surdamente, bocados de neve.
2. ...tardes suaves como
barcos atracados no cais.
3. tenho as mãos cheias
de auroras. Garças brancas dançam nos meus olhos. No ventre, cegonhas mansamente
se aninham.
São escrituras que brotaram de maneira bastante
espontânea e que senti que poderia compartilhar imediatamente. Assim, são
carregadas das sensações e da emoção no momento de sua criação. Em geral,
“escrevo” o texto na memória e, durante esse processo, fico selecionando
palavras tanto por seu significado e carga poética quanto por sua sonoridade.
Após, gravo o áudio e posso experimentar com a incorporação de sons do
ambiente, em seguida, faço o compartilhamento. Os textos sempre são gravados com
a voz bastante esvaziada de entonação dramática, pretende-se assim concentrar
seu interesse no sentido textual. Algumas vezes são incorporados sons locais,
tais como cantos de pássaros ou o som das ondas do mar. Considero que eles
adensam a escuta.
Há outros textos que são mais extensos, em geral,
escrevo-os para poder visualizar sua totalidade e, então, passar para a etapa
de “lapidação” com as alterações por substituição, adição e subtração. Após, é
que são gravados e compartilhados. Alguns exemplos:
1. Muros de pedra retêm o tempo, como a madeira
musgosa da velha carreta que jaz, dinossáurica, sob o cipreste. Caturritas
espantam o silêncio que geme no mugir das vacas. Relincha a manhã preguiçosa.
Velhos troncos e pedras cobertos de liquens enchem meu corpo de séculos. No
final da Serra do Sudeste estão soterrados de história o estalar dos sabres e
os barulhos de cascos do gado xucro e da cavalaria livre. Indiferentes, as
bergamotas estalam de cor o verdume do campo. Como elas, os cardeais e meu
coração.
2. Um homem de idade indefinida e paletó gasto.
Olhos negros pregados no fundo das olheiras. A boca murcha pela falta de dentes
e sorrisos. Ele caminha sem prestar atenção nas poças d'água. Decidido e altivo
como aqueles que têm coragem de desafiar a chuva fria e a má sorte.
Assim, mesmo considerando que Acontecimentos
Sonoros porte uma ideia de espontaneidade, são proposições sonoras que
envolvem trabalho e reflexão para que adquiram tanto este tom de “frescor”
quanto um ritmo adequado a cada ideia e sentido poético.
Referências
ALCÂNTARA, Celina Nunes de. “A
Voz como Ato Performático e Cultivo de Si – aproximações interdisciplinares”.
In: Trama Interdisciplinar. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em
Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie, 2010.
Disponível em: <http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/tint/article/view/2138>, acesso em 06 mar. 2015.
BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma
história social da mídia: de Gutenberg à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2006.
DELEUZE, Gilles.
Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2000.
ICLE, Gilberto e ALCÂNTARA,
Celina Nunes de. “Teatro, Palavra, Performance: pensar a voz para além da
expressão”. In: Repertório: teatro & dança. Salvador: Programa de
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LUCENA, Tiago Franklin
Rodrigues. “Telefones fazem arte”. 2009. Disponível em: < http://www.fav.ufg.br/seminariodeculturavisual/Arquivos/2009/artigos%20gt2/Tiago_Franklin%20-%20Telefones_fazem_Arte_UnB%5B1%5D.pdf >, acesso em 29 jul. 2015.
NUNES,
Andrea Paiva. Todo Lugar é Possível:
a rede de arte postal, anos 70 e 80.
Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: Instituto de Artes/UFRGS, 2004.
Disponível em: < https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/7037/000494374.pdf?sequence=1>, acesso em: 25 abr. 2015.
PAIM,
Claudia. Em torno da ausência. Porto Alegre: Edição da autora, 2015.
STOLF,
Raquel. Entre a Palavra Pênsil e a Escuta Porosa. Tese de Doutorado. Porto Alegre: Instituto de
Artes/UFRGS, 2011.
[1] Performer que vive e trabalha em Curitiba -
PR. Sobre Eu Prometo, ver maiores informações, inclusive quanto à
reperformances em http://www.fernandoribeiro.art.br/br/artista/performance-art
[2] Mais informações disponíveis em: http://www.raquelstolf.com/?p=703
[3] Disponível em: http://www.raquelstolf.com/?p=234.
Acesso em 21 ago. 2015.
[4] Cantora norte-americana, 1915-1959.
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